11 de agosto de 2010

DANIEL 3: A DESFORRA

Os hebreus ficaram em silêncio. São os outros que falam deles. E por essa razão o testemunho torna-se mais poderoso.
A calúnia dos caldeus contra os hebreus transforma-se agora em elogio da parte do rei. A ordem (teem) do rei de adorar a estátua – “Agora, pois, se estais prontos, quando ouvirdes o som da trombeta, da flauta, da harpa, da cítara, do saltério, da gaita de foles, e de toda a sorte de música, para vos prostrardes e adorardes a estátua que fiz, bom é; mas, se não a adorardes, sereis lançados, na mesma hora, dentro duma fornalha de fogo ardente; e quem é esse deus que vos poderá livrar das minhas mãos?” (Daniel 3:15) – responde com uma outra ordem (teem) a de não caluniar o Deus dos hebreus (v. 29).
Uma vez mais o rei não ousou dirigir-se directamente a Deus. Face a face com Deus, ele age e fala como se nada se tivesse passado. Ele tinha visto quatro homens e a sua atenção foi de forma particular centrada no quarto (v. 25). No entanto dirige-se a três (v. 26), e o quarto é ignorado. É verdade que ele começa com uma fórmula que pronuncia a tradicional oração: “Falou Nabucodonozor, e disse: Bendito seja o Deus de Sadraque, Mesaque e Abednego, o qual enviou o seu anjo e livrou os seus servos, que confiaram nele e frustraram a ordem do rei, escolhendo antes entregar os seus corpos, do que servir ou adorar a deus algum, senão o seu Deus.” Daniel 3:28. “Bendito seja o Deus...” mas na realidade ele mantém-se distante e numa postura objectiva.
A sua teologia está certa. Nabucodonosor define este Deus como o Deus que salva e como o Deus único. Mas para ele, este Deus só age a favor dos hebreus. Este Deus não é o seu. Não é Deus no sentido absoluto do termo. As palavras de Nabucodonosor são bem claras: “Deus de Sadraque, Mesaque e Abedenego” o que “livrou os seus servos” porque eles “confiram n´Ele” e colocaram as suas vidas em risco “do que servir ou adorar a deus algum” (v.28). Para Nabucodonosor a religião de Israel permanece um fenómeno que se relaciona com um Deus e uma tribo. A atitude dos hebreus é interpretada como um acto heróico e de grande coragem de um povo fiel aos seus próprios valores mais do que um acto de fé e confiança no Deus universal, o único Deus.
Nabucodonosor não deixa de se reconhecer que este Deus é eficaz, e mesmo mais eficaz que os outros deuses: “Por mim, pois, é feito um decreto, que todo o povo, nação e língua que proferir blasfémia contra o Deus de Sadraque, Mesaque e Abednego, seja despedaçado, e as suas casas sejam feitas um monturo; porquanto não há outro deus que possa livrar desta maneira.” Daniel 3:29. No entanto, ele não se compromete. Não se trata de conversão ou de mudar de religião. Pode-se por instantes ficar impressionado e até comovido face ao prodígio e à força do argumento; pode reconhecer-se que ali houve a manifestação de um poder superior e até único, algo nunca visto, no entanto, refugiar-se atrás do argumento: “a cada um a sua religião”. A razão desta inconsequência é simples. A religião é aqui relegada para uma dimensão social com os seus valores e as suas tradições. Neste caso, cada um fica no que crê, sem correr o risco de cortar com as raízes herdadas e do confronto.
É preciso coragem para se tirar lições da verdade e aplicá-las ao concreto da existência. Todos sabemos que certo hábito de pensar ou de agir, de comer ou beber pode ser ruinoso para a saúde. Mas no entanto não se muda. O ser humano é mesmo assim. É muito mais fácil de continuar no erro, mesmo consciente que se está mal, que romper para se ser coerente e escolher um rumo segundo a verdade. E quanto mais se está integrado na sociedade, mais difícil se torna tomar uma iniciativa que nos leve a romper e assumir princípios que vão contra a corrente das coisas. Para os reis, para todos os que têm êxito, todos aqueles que estão instalados no sistema e adquiriram um estatuto de respeito, tal rompimento com a sociedade nem sequer é a considerar.
Mas mesmo assim, o rei promulgará um decreto que legalizará a religião hebraica. A partir de agora, o que ousar caluniar este Deus está sob pena de morte. A situação inverteu-se. Ao mesmo publico do início da história são dirigidas as palavras: “Por mim, pois, é feito um decreto, que todo o povo, nação e língua que proferir blasfémia contra o Deus de...”(v.29). Antes, este apelo universal obrigava a adoração de uma estátua; presentemente, exige respeito à religião dos outros (hebreus).
Não é que Nabucodonosor tenha de repente compreendido o valor da tolerância. O seu novo decreto não é inspirado pelo cuidado de fazer respeitar todas as religiões. O que está unicamente em causa é a religião dos hebreus. Como ficarão as outras? Dadas todas as conquistas de Nabucodonosor, as religiões mais variadas coabitavam em Babilónia. “Todos os povos” estão aqui representados. Claro está, a religião de Israel é a única que é distinta pela sua resistência, e a este título ela merece uma menção muito especial. Mas o estatuto privilegiado que o rei confere à religião dos hebreus demonstra que ele reconhece de facto que esta religião é superiora às outras. Nisto está a razão principal da sua reviravolta. A promulgação do decreto não se deve ao seu desejo de ser tolerante mas à descoberta da religião que provoca reviravolta, a religião que incomoda. A prova disso é que ele acompanha esta ordem de uma ameaça de destruição. Na realidade, este zelo “missionário” que se transforma num dedo ameaçador e faz apelo ao “fogo do céu” (Lucas 9:54) esconde a sua fuga diante das responsabilidades face ao verdadeiro Deus.
Seria falso considerar a violência religiosa como a expressão de uma profunda convicção. A morte e a guerra, a tortura da inquisição, bem como todas as medidas de repressão em nome da religião não são sinais de fé, mas bem pelo contrário, são sintomas de covardia espiritual e de angústia. Em compensação desta necessidade ou vazio de Deus que ele sentia, o “falhado” da religião faz-se Deus a ele próprio e mata. Depois do crime de Caim, o primeiro crime causado pela intolerância religiosa, a história dá conta da forma dramática da intolerância e é um aviso. Caim matou Abel não porque ele estivesse convencido da sua própria verdade e porque Abel estivesse no erro, mas antes, por causo do fracasso religioso, por não ter respondido ao apelo de Deus.

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