2 de setembro de 2009

APOCALIPSE: INTERVALO ENTRE O SEXTO E O SÉTIMO SELO

(Apocalipse 7:1-17)
Para além do dia terrível em que se manifestará a cólera de Deus, o profeta João abre um parêntese e a sua visão para sobre os que “podem subsistir” (Ap. 6:17). A cólera é retida por um instante, o período que leva a marcar de um sinal distintivo os que devem ser poupados, isto na perspectiva da consumação do sétimo selo.
O método faz lembrar a saída do Egipto, quando o anjo da morte poupou os Israelitas graças ao sinal de sangue aspergido no lintel e nas ombreiras das portas (Ex. 12:23), e isto na perspectiva da Terra prometida (Ex. 12:25). Mas desta vez a cena tem uma amplitude que alcança toda a terra. Os quatro ventos dos céus que são portadores da cólera de Deus sopram dos “quatro cantos da terra”, ou seja de todos os lados e para toda a parte (ver Daniel 7:2).
O ritmo do quiasma (em ABA´) que estrutura a ordem dada ao anjo avisa por antecipação a identidade dos resgatados. A primeira ordem (A) poupa a terra, o mar e as árvores (Ap. 7:1). A segunda ordem (B) ameaça a terra e o mar (Ap. 7:2). A terceira ordem (A´) de novo poupa a terra, o mar e as árvores (Ap. 7:3).
O centro do quiasma revela precisamente o elemento da natureza que deve ser poupada pelos ventos. Quando a ordem é dada de destruir, limita-se explicitamente à terra e ao mar (Ap. 7:2) que representam todo o planeta (ver Ap. 10:2,5; Gén.1:1-9; Ex. 20:11; Neemias. 9:6; Salmo 95:5; Mateus 23:15). As árvores estão excluídas da lista de calamidades como se fossem as únicas a sobreviverem na ordem terrestre. Esta observação de estilo é confirmada implicitamente sobre o plano da sintaxe.
Na primeira ordem que anuncia todas as outras, a palavra “árvore” (Ap. 7:1) recebe uma declinação diferente das palavras “terra e mar”. “Arvore” é um acusativo, enquanto a “terra e mar” estão no genitivo. O que se pode dizer relativo à diferença gramatical, é que sugere uma relação diferente por um lado os ventos, a terra e o mar, e por outra parte os ventos e as árvores.
Esta forma de estilo e de sintáctica de distinguir as árvores dos outros elementos traduz em todo o caso a intenção de as colocar à parte ou de lhes dar realce. As árvores representam a persistência. Graça às suas raízes que mergulham na terra, elas poderão resistir ao vento. Assim, nas Escrituras, as árvores com as suas fortes raízes representam os justos (Salmo 1:3; Jer. 17:8), enquanto que a palha levada pelo vento representa os ímpios (Salmo 1:4; Job 21:18).
A preservação das árvores deve portanto ler-se como uma alusão á protecção dos justos. Mas, curiosamente, estes justos/árvores não devem a sua salvação às suas raízes na terra. A sobrevivência vem do alto. As suas frontes estão marcadas com um selo. A operação é conduzida por um outro anjo que vem do Este como o Sol, a vida e a luz – como a esperança, como o jardim do Éden (Gén. 2:8), como o rei salvador Ciro (Isaías 41:2), como o próprio Deus salvador (Ezequiel 43:2).
Contrariamente aos outros selos que levam a mensagem de morte, este é portador do selo do Deus da vida (Ap. 7:2). Em contraste com todos os selos que anunciam o julgamento e a destruição da terra, este selo significa a salvação e a criação. Este selo distingue-se pela sua própria função. Os outros selos são dados para garantir o fecho absoluto do documento, enquanto que este é dado para marcar a propriedade.
Os antigos tinham de facto o hábito de colocar um selo sobre a mercadoria como sinal de pertença. Geralmente, o selo, consistia numa peça de metal ou numa pedra preciosa (Ex. 28:11; Ester 8:8), onde era gravado o nome do proprietário, ou um desenho, por vezes até dois. A marca colocava-se de ordinário na argila (Job 38:14). No caso, o selo é marcado sobre a fronte. A primeira vez que a Bíblia regista uma tal operação, é a propósito de Caim que recebe sobre a fronte um sinal cujo objectivo é de o proteger (Gén. 4:15). Mas é sobretudo o livro de Ezequiel que contém o texto mais próximo da nossa passagem: “E disse-lhe o Senhor: Passa pelo meio da cidade, pelo meio de Jerusalém, e marca com um sinal as testas dos homens que suspiram e que gemem por causa de todas as abominações que se cometem no meio dela. E aos outros: (...). Matai velhos, mancebos e virgens, criancinhas e mulheres, até exterminá-los; mas não vos chegueis a qualquer sobre quem estiver o sinal; e começai pelo meu santuário. Então começaram pelos anciãos que estavam diante da casa.” (Ez. 9:4-6).
Os que recebem a marca sobre a fronte são todos aqueles que permaneceram fiéis a Deus e reagem às “abominações” (Ez. 9:4) dos seus contemporâneos. O mesmo termo “abominações” é empregue alguns versículos antes para designar o pecado da idolatria e de adoração ao sol (Ez. 8:16,17).
A marca sobre a fronte representa portanto a adoração ao verdadeiro Deus, o Deus vivo, o Criador. É o sentido particular que é evidenciado na nossa passagem de Apocalipse, tanto mais que este texto faz referencia à criação. A sequência terra, mar, árvores segue de facto o acto da criação do terceiro dia (Gén. 1:9-13). Se este selo é a marca da adoração do Criador, é por consequência o sinal de pertença a Deus. Porque confessar a pertença a Deus revela a fé no Deus Criador. Esta relação é frequentemente sublinhada nos Salmos, onde Deus é cantado como o proprietário de todas as coisas, precisamente, porque Ele é o Criador de todas as coisas. “Do Senhor é a terra e a sua plenitude; o mundo e aqueles que nele habitam. Porque ele a fundou sobre os mares, e a firmou sobre os rios.” (Salmo 24:1,2 cf Salmo 89:12,13; Salmo 100:3).
Reconhecer Deus como o proprietário de todas as coisas, como seu proprietário, é ao mesmo tempo reconhecê-l´O como o Criador, o seu Criador. É toda a mentalidade religiosa que está aqui em realce pelo selo de Deus. é tão simplesmente reconhecer que tudo o que temos, tudo o que somos, o devemos a Deus. a Bíblia traz esta lição a todas as esferas da existência. Descobrimos o princípio no dízimo que é colocado à parte para Deus na nossa consciência sensível é reconhecer que Ele é o proprietário de todos os bens. É assim que Melquisideque justificará a oferta do dízimo pelo facto que Deus é o “Mestre do céu e da terra” (Gén. 14:19). A mesma associação é confirmada no livro de Leviticos. Antes de entrar na terra prometida, o povo de Israel deve lembrar-se que a terra pertence a Deus: “Também não se venderá a terra em perpetuidade, porque a terra é minha; pois vós estais comigo como estrangeiros e peregrinos.” (Lev. 25:23). Deste principio se conclui que: “Também todos os dízimos da terra, quer dos cereais, quer do fruto das árvores, pertencem (são do Senhor) ao senhor; santos são ao Senhor.” (Lev. 27:30).
Não será por acaso que o Sábado ocupa no Decálogo a parte central e normalmente reservada ao selo nos antigos documentos das alianças. O Sábado, exprime a fé no Criador e o reconhecimento que Lhe é devido em todas as coisas, ele faz parte do selo de Deus. Destaca-se igualmente o selo de pertença a Deus nas coisas alimentares em Daniel e os seus três companheiros, que traduzem a sua intenção de fincar a sua dependência do Criador antes que ao rei (Daniel 1).
O selo de Deus sobre a fronte significa de facto a marca de Deus sobre a própria pessoa, sobre o seu corpo e o seu espírito. É o sinal de que pertencemos a Deus. A imagem que se reflecte na criatura humana, segundo o texto de Génesis (Gén. 1:26), constitui seguramente o selo de Deus. Viver segundo Deus, é ao mesmo tempo afirmar e demonstrar esta verdade. O selo de Deus é portanto muito mais que uma simples tatuagem sobre a fronte, um gesto ritual ou uma observância qualquer. Através desta imagem, o Apocalipse designa de forma mais ampla aqueles que confessam Deus Criador e mestre, na sua religião como na sua vida de todos os dias. O Sábado, o dizimo, uma escolha alimentar, o respeito pela Lei de Deus são só indícios de uma mentalidade; eles podem seguramente atestar a presença do selo de Deus, mas eles não o são de uma forma mágica o selo de Deus. O selo de Deus é ao mesmo tempo invisível e vivo, tal como o Deus Criador em tudo o que Ele significa. O sinal é de natureza espiritual, como o Deus que ele representa.
E isto é aliás, a mesma coisa para os portadores do selo de Deus. Trata-se de uma entidade espiritual. O número 144.000, composto de 12X12, é simbólico. 12, aqui identificado, é o número da aliança entre Deus e o Seu povo (4, número da terra, x 3, número de Deus). É também o nome das doze tribos de Israel, que estão aqui plenamente mencionadas (Ap. 7:4-8). Cada tribo compreende doze mil pessoas. Quanto ao número 1000 que multiplica 12, traduz não somente a ideia de multidão (Juízes 15:15; 1ª Crónicas 12:14; 16:15; Salmo 91:7), mas igualmente e na etimologia hebraica pressupõe, o de tribo em toda a sua plenitude. Em hebreu, a palavra elef (mil) designa igualmente a tribo, a multidão, o clã, ou mesmo o regimento (Êxodo 18:21 Deuteronómio 33:17; Juízes 6:15; Números 1:16; Josué 22:21). O número 12.000 significa portanto tribo em toda a sua plenitude. Ora, na época de João, as tribos tal como elas o eram no passado tinham desaparecido. As que restavam eram Judá, Benjamim e Levi. Isto vale dizer que isto não se aplica a Israel, ou seja a questão não é de ordem literal. E o ritmo regular da lista das tribos reforça esta impressão de plenitude e de perfeição. É um exército em parada.
Aliás, a palavra okhlos traduzida aqui por “multidão” significa igualmente “exército”, e os versículos 9 e 10 (Ap.7) descrevem de facto um exército vitorioso depois da batalha. As vestes brancas com as palmas fazem parte da cerimónia do guerreiro e do ritual da vitória (João 12:13). Na simbologia dos números como no estilo do texto e até na descrição da multidão, o verbo profético transmite a mesma mensagem: os cento e quarenta e quatro mil representam Israel em ordem – quando acampavam – como na plenitude. É “todo o Israel” sonhado pelo Apóstolo Paulo (Rom. 11:26), o número “completo” dos salvos referidos no quinto selo (Ap. 6:11). É também esta grande multidão “de todas as raças, nações, povos e línguas” que João vê, toda ela vestida de vestes brancas (Ap. 7:9; cf. 6:11) sobrevivendo à opressão (Ap. 7:14; cf. 6:9,11).
O número não está ainda completo no quinto selo, os cento e quarenta e quatro mil e a multidão são o mesmo povo. Eles estão finalmente lá enfim, na totalidade, na plenitude, estes desenraizados da história, esta minoria sofrida, perseguida cuja única referencia vinha do Alto, todos eles tinham perdido o sentido de pertença porque estiveram sós, não foram compreendidos, marginalizados, cidadãos de outro reino. Eles reencontram-se e de repente descobrem a sua identidade em Israel. Unidos no espírito, nas mesmas recordações de lutas e de sofrimentos, eles estão agora reunidos com corpos não mais sujeitos à doença, morte, não serão mais perseguidos pela fé. A emoção é tanta que atinge todos os sentimentos que se manifestam numa melodia que ao mesmo tempo parece um grito de vitória, mas é uma liturgia de adoração ao Deus Criador e Redentor (Ap. 7:10).
A esta liturgia de adoração, os anjos, os anciãos e os quatro seres vivos respondem imediatamente por um “Amem” envolto numa adoração em sete tempos: “dizendo: Amém. Louvor, e glória, e sabedoria, e acções de graças, e honra, e poder, e força ao nosso Deus, pelos séculos dos séculos. Amém.” (Ap. 7:12).
A visão situa-se presentemente no céu e transporta-nos para um futuro distante, ao momento em que os seres celestes se juntarão à adoração com os seres humanos; quando Deus habitará enfim verdadeiramente entre o Seu povo. Este O servirá “dia e noite no Seu templo” (Ap. 7:15) como os sacerdotes Levíticos serviam outrora (1ª Crónicas 9:33). A visão explicita-se na imagem da Tenda da Congregação e Deus manifesta-se sobre ela e sobre o povo (Ap. 7:15). A imagem trazida da história de Israel evoca o santuário no deserto.
A língua grega permite-nos (kenosei: levantar a tenda) entender e até a palavra hebraica (shekhina do verbo shakhan, habitar) que designa a nuvem e a coluna de fogo, sinais de Deus “habitando” entre eles (Ex. 40:34-38).
A presença de Deus é efectiva. Deus é presente fisicamente. O texto termina por uma alusão ao Salmo 23. o pastor que conduz as ovelhas às fontes de águas vivas (frescas), é a passagem ao Deus próximo que nos leva até ao toque e a limpar “toda a lágrima dos olhos” (Ap. 7:17). Deus não se contenta de suprir todas as nossas necessidades. Não se contenta em suprir a fome, a sede, o calor, o sofrimento não nos atingirão mais, mas Deus aproxima-Se e a relação torna-se mais intima: Deus consola.
Talvez ainda seja fortuita, mas a imagem do novo mundo e das suas alegrias pode já sentir-se o seu perfume, tal como, quando nos aproximamos do jardim. Seja Deus louvado!

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